'Doutrina Donroe': como Trump vê a América Latina, segundo sua estratégia de segurança nacional
A nova Estratégia de Segurança Nacional retoma a Doutrina Monroe GETTY IMAGES O recente bloqueio "total e completo" de todos os navios petrolíferos sancionad...
A nova Estratégia de Segurança Nacional retoma a Doutrina Monroe GETTY IMAGES O recente bloqueio "total e completo" de todos os navios petrolíferos sancionados que entrarem e saírem da Venezuela e o resgate financeiro incomum à Argentina são amostras da relevância da América Latina para o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A nova Estratégia de Segurança Nacional americana reafirma a decisão dos Estados Unidos de ampliar sua presença militar e influência na região. Publicada pela Casa Branca no dia 4 de dezembro, o documento reflete a visão de mundo do atual governo americano. "Meu governo agiu com urgência e velocidade histórica para restaurar a força dos Estados Unidos no país e no exterior", afirma a carta assinada pelo presidente Trump, que abre o documento de 33 páginas. Segundo as novas diretrizes de segurança, Trump observa a América Latina decidido a frear a imigração ilegal, conter o avanço do narcotráfico e melhorar as relações com seus aliados ideológicos e parceiros comerciais. Veja os vídeos que estão em alta no g1 Para isso, ele propõe a retomada da política externa do ex-presidente James Monroe (1758-1831): "A América para os Americanos." Com a Doutrina Monroe, os Estados Unidos declararam, em 1823, sua intenção de proteger a região contra o avanço de potências de outros continentes. "Depois de anos de abandono, os Estados Unidos reafirmarão e aplicarão a Doutrina Monroe para restaurar a proeminência americana no hemisfério ocidental", segundo o documento. Esta abordagem recebeu o nome de "corolário Trump à Doutrina Monroe", mas foi apelidado de "Doutrina Donroe", uma combinação dos nomes Donald e Monroe. O termo apareceu em janeiro na primeira página do jornal New York Post e foi rapidamente adotado por analistas americanos e pela imprensa internacional. 🤔 Estaríamos então frente a uma nova Doutrina Monroe na região? Quais são as preocupações e interesses de Trump na América Latina? E como ele fará para ampliar sua influência no continente? O porta-aviões USS Gerald R. Ford aguarda no Caribe, em frente ao litoral da Venezuela GETTY IMAGES De Monroe a Trump Para que os Estados Unidos possam consolidar seu poder global, Trump entende que seu país deve primeiramente reafirmar sua influência na região. "Os Estados Unidos devem ser proeminentes no hemisfério ocidental, o que é uma condição para nossa segurança e prosperidade, que permite nos afirmarmos com confiança onde e quando necessitarmos na região", segundo a nova estratégia. Para o pesquisador de Estudos Latino-Americanos do think tank (centro de pesquisa e debates) Conselho de Relações Exteriores, Will Freeman, Trump procura dar um "novo alento a uma velha ideia". "É uma espécie de justificativa ideológica para a intervenção dos Estados Unidos ou para a linha dura na região, concentrada explicitamente na imigração", declarou Freeman à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Mas o documento também menciona os cartéis de drogas e as incursões estrangeiras hostis, o que relembra a Doutrina Monroe na sua versão original", destaca ele. Trump ordenou que o Golfo do México passe a se chamar Golfo da América GETTY IMAGES Criar uma estratégia inspirada na antiga Doutrina Monroe não é uma ideia nova. Em 1904, o então presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) estabeleceu seu próprio "corolário Roosevelt" àquela doutrina do século 19. Naquele momento, Roosevelt defendia que os Estados Unidos deveriam intervir nos países da região que não fossem capazes de cumprir com seus compromissos financeiros ou cuidar das suas democracias, explica Freeman. De qualquer forma, o que sabemos até o momento sobre o chamado "corolário Trump" é muito vago. Por isso, o analista recomenda não considerá-lo um plano estratégico, mas uma declaração de princípios. "Trump não segue uma política externa suficientemente consistente para ser chamada de doutrina", segundo ele. "Também não faz nenhuma declaração que nos ajude a entender como as medidas que ele está tomando se relacionam com seus objetivos mais ambiciosos." Interesses na região Para Trump, os países da América Latina são a origem de muitos dos problemas enfrentados pelos Estados Unidos. Mas também podem ser a chave para sua solução. O documento apresenta a "migração ilegal e desestabilizadora" como um dos principais problemas originados na América Latina. Afinal, a metade dos imigrantes que vivem nos Estados Unidos provém do continente, principalmente do vizinho México. "É a região do mundo que mais interessa para seus objetivos de política interna", destaca Freeman. Por outro lado, ele menciona o perigo representado pelos cartéis de drogas, considerando que quase toda a cocaína consumida nos Estados Unidos provém de três países da região: Colômbia, Peru e Bolívia. Neste particular, a nova arquitetura de segurança nacional se baseia no fato de que os Estados Unidos consideram a região como "parte da sua fronteira de segurança interna", segundo o professor Bernabé Malacalza, autor do livro Las Cruzadas del Siglo XXI ("As cruzadas do século 21", em tradução livre), que trata das relações entre os Estados Unidos e a China. "A América Latina passou a ser prioridade para os Estados Unidos", afirma o professor da Universidade Torcuato Di Tella, na Argentina. Para ele, o continente "adquiriu uma posição que antes não tinha, o que se explica pelo protagonismo alcançado pela segurança do hemisfério." O presidente da Argentina, Javier Milei, passou a ser aliado de Donald Trump na região GETTY IMAGES O documento também menciona a necessidade de limitar as incursões estrangeiras hostis. Esta é claramente uma referência à China, mesmo sem mencionar nominalmente o país asiático. Em termos comerciais, Trump procura melhorar seus acordos com os parceiros da região, com seu slogan America First (Os Estados Unidos em primeiro lugar). A nova estratégia defende o uso de "alíquotas e acordos comerciais recíprocos como ferramentas poderosas", algo que o governo Trump já colocou em prática com diversos países do continente, com resultados distintos. No caso específico do México, a Casa Branca sabe que as empresas americanas também foram afetadas pelas disputas comerciais. "Por isso, Trump procura consolidar acordos orientados ao nearshoring", a estratégia de transferir parte da produção para países próximos dos consumidores. "Ele entende que a região faz parte da reconfiguração das cadeias de valor", segundo Malacalza. Trump deseja não apenas o crescimento das empresas americanas, mas que os países aliados fortaleçam suas economias nacionais, de forma a intensificar as relações comerciais. Segundo o documento, "um hemisfério ocidental economicamente mais forte e sofisticado se transforma em um mercado cada vez mais atraente para o comércio e os investimentos dos Estados Unidos". "Os países da região representam impacto desproporcional sobre estes assuntos internos, muito importantes para Trump e que também interessam sua base política", descreve Freeman. Nicolás Maduro denuncia que Trump deseja derrubá-lo da presidência da Venezuela e ficar com o petróleo do país GETTY IMAGES Represálias e recompensas O mastodôntico porta-aviões USS Gerald R. Ford está no Caribe desde novembro. Sua presença serve não só para pressionar o governo venezuelano, mas também como reflexo dos novos posicionamentos dos Estados Unidos em relação à segurança. A nova estratégia afirma que a Casa Branca pretende destacar "presença [militar] mais adequada" e realizar "destacamentos específicos" para controlar as fronteiras terrestres e as rotas marítimas. Os Estados Unidos chegam a possibilitar "o uso de força letal para substituir a fracassada estratégia baseada apenas na aplicação da lei das últimas décadas", segundo o documento. "A força é o melhor elemento de dissuasão", destaca a Casa Branca, deixando aberta a opção de represálias na sua política externa. O governo Trump declarou que procura reviver a ideia de "paz pela força", o lema do ex-presidente americano Ronald Reagan (1911-2004), baseado em usar o poderio militar para garantir a estabilidade. Mas, para Malacalza, a política de segurança em relação à América Latina "não configura uma arquitetura regional ou hemisférica, mas sim procura fazer com que os países se alinhem aos Estados Unidos e, em última instância, a Trump". O presidente dos EUA, Donald Trump, se reúne com o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, no Salão Oval da Casa Branca Getty Images Por outro lado, os Estados Unidos oferecem uma série de recompensas para seus aliados. "Recompensaremos e incentivaremos os governos, partidos políticos e movimentos da região que se alinharem amplamente aos nossos princípios e estratégia", destaca o documento. A política dos Estados Unidos deveria, segundo o documento, concentrar-se em apoiar líderes e aliados regionais "capazes de promover uma estabilidade razoável na região", que ajudem a frear a migração ilegal e a neutralizar os cartéis. Esta política de recompensas foi observada em outubro, quando Trump anunciou o resgate de US$ 20 bilhões (cerca de R$ 110 bilhões) para a Argentina. Ou no mês seguinte, quando foram assinados acordos com o Equador, El Salvador e a Guatemala, além da própria Argentina, para reduzir as alíquotas de importação. Em qualquer dos casos, os analistas consultados pela BBC afirmam que a chamada "Doutrina Donroe" entende que a região é principalmente um lugar de ameaças, mais do que de oportunidades. "Eles se preocupam muito mais em evitar que as ameaças perigosas da América Latina cheguem aos Estados Unidos, segundo eles, do que em aproveitar as oportunidades oferecidas pela região", resume Freeman. Trump assina decreto para rebatizar o Golfo do México como 'Golfo da América'