Cliques, tempo em reunião e monitoramento de tela ao vivo: os programas que vigiam funcionários em home office
Programas podem capturar tela, conversas e histórico de navegação, mostra teste da BBC Getty Images via BBC Quando o banco Itaú anunciou a demissão de mais...

Programas podem capturar tela, conversas e histórico de navegação, mostra teste da BBC Getty Images via BBC Quando o banco Itaú anunciou a demissão de mais de 1 mil funcionários que trabalhavam em regime remoto ou híbrido, na semana passada, uma das maiores surpresas para demitidos foi descobrir a quantidade de informações sobre o que faziam no computador que era de conhecimento da empresa. O próprio banco explicou, conforme mostrou a BBC News Brasil, que mediu a atividade dos colaboradores ao longo de quatro meses. Foram considerados o uso de mouse e teclado, chamadas de vídeo, envio de mensagens, realização de cursos, pacote office, dentre outras métricas. Embora esse monitoramento do trabalho remoto não seja uma novidade e venha sendo aplicado ao menos desde o boom do home office causado pela pandemia do coronavírus, o caso chamou a atenção pelo nível de detalhamento desse tipo de vigilância. O banco nega que tenha feito captura de telas, áudio ou vídeo, já que isto poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ainda assim, uma série de ferramentas de vigilância de atividades foi aplicada por meses. Mas, afinal, o que exatamente esse tipo de programa pode fazer? A BBC News Brasil testou e analisou dois deles na última semana, XOne e Teramind, assistiu a conteúdos publicados por usuários das plataformas, anúncios das empresas e identificou ações judiciais que citam a vigilância feita por essas ferramentas. Os testes da BBC demonstram que esse tipo de programa permite ver em tempo real o que cada funcionário está fazendo, quais sites estão sendo acessados e até identificar, de forma automatizada, se o funcionário realizou alguma ação em desacordo com as políticas da empresa (por exemplo, entrar em um site proibido ou mandar e-mail com dados sensíveis). No caso XOne, nosso teste não pode ser concluído. A empresa que o administra removeu o acesso à plataforma de demonstração do software durante a apuração desta reportagem, após a repercussão das demissões no banco. Ainda assim, foi possível acessar informações em vídeos divulgados pela própria empresa e publicações em suas redes sociais. O jornal Folha de S.Paulo e outros veículos de imprensa afirmaram que o XOne era o software utilizado pelo Itaú, informação que as empresas (o banco e a responsável pelo software) não confirmam nem negam. Felipe Oliveira, cofundador da empresa que administra o XOne, disse por e-mail que o acesso para testes foi removido por causa do volume de solicitações, mas que todos os pedidos já efetuados por esse canal serão atendidos. A BBC News Brasil não conseguiu retomar os testes, mesmo tendo reiterado os pedidos. O Itaú também se recusou, por e-mail, a demonstrar como funciona a plataforma na empresa. Não é possível afirmar, no momento, quais dessas capacidades identificadas pela BBC foram ou não utilizadas pelo banco Itaú. O banco afirmou, em nota, que o monitoramento se restringe ao uso corporativo de softwares licenciados pela empresa. O Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou um procedimento investigatório na última terça-feira (16/09) em que pede esclarecimentos à empresa sobre o episódio das demissões. Monitoramento de tela e controle do computador Demonstração da Teramind tem tela de monitoramento ao vivo de computadores, com nomes fictícios Reprodução Fundada em 2014, a Teramind diz em seu site que é líder em "soluções comportamentais" e que atende mais de 10 mil organizações em mais de 125 países. O suporte da empresa disse que eles possuem "muitos" clientes no Brasil, embora não haja um número específico. O programa de monitoramento da empresa está disponível para testes e oferece uma demonstração com dados fictícios no próprio site, sem instalar nada. Nele é possível ver e testar uma função chamada "live activity overview", que mostra telas de funcionários em tempo real. A BBC entrou em contato com o suporte da empresa para questionar sobre possíveis problemas de privacidade e dados pessoais. A Teramind disse que isso deve ser checado com advogados em cada país e que não dá aconselhamento legal aos clientes. A lista de ferramentas da empresa é extensa. Esses são alguns exemplos: - Monitoramento do histórico de sites e aplicativos visitados pelo funcionário; - Visão e controle remoto do computador do funcionário; - Atividades em mídias sociais; - Identificação automatizada de possível comportamento malicioso ou não autorizado, com registro da ação em vídeo; - Interações com o computador / produtividade (para este item há um indicador de horas trabalhadas e taxa de atividade). A tela de demonstração da plataforma também mostra uma série de rankings, que dizem quais são os sites mais acessados, os usuários com maior atividade e possíveis práticas não autorizadas. Uma delas mostra usuários que navegam em aba anônima, por exemplo. Há até um alerta para quem entra em sites de "busca de emprego" nesta demonstração, bem como "enviar e-mail com informações sensíveis." Em 2022, ao menos duas ações na Justiça do Trabalho brasileira citaram a Teramind em processos contra uma mesma companhia de venda de veículos em São Paulo. A empresa dona do software não foi acusada de nada nem é parte do processo, mas foi mencionada como plataforma de monitoramento. Nos contratos, a companhia de carros justifica o uso do software contratado como forma de proteger dados internos — imagens de tela, conversas, dados de clientes. Em um dos processos, um ex-representante comercial pediu o reconhecimento de vínculo trabalhista, alegando que sua rotina era de empregado, já que até sua jornada era controlada via Teramind, que registrava horários online/offline e tempo ocioso. Em outro, o trabalhador afirmou que seu notebook era monitorado e que não podia recusar clientes, pois o programa verificava se o atendimento ocorria de fato e até espionava ligações. A empresa não comentou esses casos específicos. Monitoramento da Teramind, em inglês, mostra comportamentos como uso de navegador em aba anônima, buscas em sites de emprego e envio de informações sensíveis por e-mail Reprodução Ranking de produtividade, sites visitados e geolocalização No caso da XOne, a empresa diz, em um vídeo no Youtube, que é possível "acompanhar em tempo real as atividades da equipe". A reportagem criou uma conta na plataforma na semana passada, mas os testes foram suspensos pela empresa depois do caso das demissões no Itaú. Foi possível identificar funções no menu do programa que permitem saber quais sites estão sendo acessados, quando e por quanto tempo, o tempo de inatividade do funcionário e a geolocalização dos computadores monitorados. As telas do programa mostram que é possível identificar quais são os programas que estão sendo usados, por quanto tempo e quem mais os utiliza. Há ainda opções para verificar aderência à jornada de trabalho (vale lembrar, esse foi um dos motivos usados pelo Itaú para as demissões; o banco alegou que essas pessoas não estariam trabalhando durante todo o período devido). A plataforma também permite visualizar rankings de colaboradores com menor aderência, por porcentagem. O programa foi criado pela Arctica, empresa fundada em 2019 e que se apresenta com o propósito de “ajudar organizações a compreenderem melhor seus ambientes digitais e a extrair valor estratégico das informações disponíveis.” A Arctica diz que não divulga sua lista de clientes, mas que atende a “serviços financeiros, telecomunicações, seguradoras, tecnologia e indústria.” Diz ainda que recomenda boas práticas de transparência sobre o uso de seu software e que a responsabilidade de avisar os funcionários é do empregador. Ressaltou também que “não realiza gravação de tela, nem captura o conteúdo de comunicações pessoais (mensagens privadas, e-mails pessoais, postagens em redes sociais, áudios ou vídeos privados).” Botão para teste de programa de monitoramento XOne foi removido de site após caso do Itaú; empresa diz que ainda é possível testar software; BBC/Reprodução/Internet Archive 'Levam o computador até para beber água durante o home office' Depois de a BBC News Brasil ter publicado depoimento de um funcionário demitido do Itaú, recebemos uma série de relatos sobre o clima na empresa. Um dos demitidos relatou que colegas que continuaram no banco estão se sentindo pressionados e com medo de serem mandados embora. "Então levam o computador até para beber água durante o home office", contou, em relação ao receio de serem considerados inativos pelo software usado pelo banco. Nenhum deles quis ser entrevistado, mesmo sem se identificar, por medo de retaliação. Essa pressão relacionada ao monitoramento do trabalho remoto é conhecida e já foi documentada em diversos estudos. Uma dissertação de mestrado de Fabrício Barili, da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sobre essas plataformas, de 2022, aponta que elas podem potencializar a disputa entre trabalhadores para continuarem empregados. O trabalho cita especificamente a Teramind e diz que a plataforma não tem a produtividade como foco, mas sim o comportamento "que pode comprometer a segurança de informação da empresa". A XOne não é citada no estudo. Empresas podem monitorar funcionários? Uma das críticas feitas por ex-funcionários do Itaú foi a falta de clareza sobre como eram monitorados. O banco afirma, no entanto, que tudo estava previsto em contrato e em políticas internas. Pedro Henrique Santos, pesquisador da Data Privacy Brasil, explica que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não proíbe o monitoramento. Mas que tudo deve ser consentido e comunicado de forma clara e acessível. "O monitoramento faz parte da relação trabalhista e o empregador tem esse direito. O uso da tecnologia não é necessariamente ruim. Mas é preciso comunicar da forma mais transparente possível, disponibilizando canais de informação e explicando já no momento da contratação." Ele ressalta que as empresas devem avaliar até que ponto essas ferramentas são, de fato, indispensáveis para a gestão. "Quando se pensa em tomar decisões a partir desses dados, é preciso avaliar se os resultados realmente são úteis. E verificar se há outra forma de chegar à mesma conclusão, com menos coleta de dados e menos monitoramento." Itaú demite funcionários após avaliar produtividade no home office